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Reportagem do Público na íntegra

PORTO SANTO CANDIDATOU-SE A RESERVA DA BIOSFERA E SONHA COM UM FUTURO SUSTENTÁVEL

 Ana Cristina Pereira (jornalista)

8 dezembro 2019

 

Durante séculos, fustigada por secas e ataques de corsários e piratas, a população dedicava-se à cultura cerealífera. Agora, procura desenvolver o turismo de forma sustentável, ser um destino para todo o ano, diferenciado pela autenticidade

No Verão, Porto Santo chega a acolher 20 mil pessoas. Há algazarra nas ruas da Vila Baleira, gente de muito lado a mergulhar ou a nadar na água azul-turqueza e a esticar-se na areia fina. Não falta onde: “há 1110 bancos de areia cobertos por água de mar, 1140 lodaçais e areias que ficam a descoberto na maré baixa, 1160 enseadas e baías pouco profundas, 2130 dunas fixas com vegetação herbácea".

Agora, que o Inverno está à porta, não fosse a vizinhança que vem passar o fim-de-semana, poucas caras estranhas haveria entre os cinco mil residentes. Quem vai dando algum trabalho a Sofia e a outros profissionais do sector do turismo são os nórdicos. Encantados com a suavidade do clima, continuam a explorar a ilha a pé e de todo-o-terreno.

“As pessoas gostam de saber como sobrevivemos aqui há seis séculos.” E a guia, de 36 anos, gosta de se demorar na história dessa luta. Começa por mostrar o Pico Castelo, defesa de ataques de piratas e corsários – o pior saque foi perpetrado por argelinos em 1617 (levaram 900 pessoas, deixando para trás apenas 19 homens e sete mulheres).

Não eram só os ataques. Faltavam lençóis de água salobre. Repetia-se a estiagem. “Não chovia. Secavam as fontes, chorava o povo. O gado morria. Lastimavam-se amargamente os lavradores, e as autoridades nada podiam fazer”, como escreveu Alberto F. Gomes, em Das Artes e da História da Madeira (1949).

A falta de água e a aridez do solo da ilha, de 11,4 quilómetros de comprimento por seis de largura, sempre limitou muito as opções de quem aqui procura fazer vida. Aproveitaram os dragoeiros para extrair sangue-de-drago. E trataram de cultivar trigo, cevada, centeio, aveia. Pelo caminho, algum vinho, alguns vegetais, alguns frutos.

Resistem alguns moinhos de vento. Ainda há muros resultantes do empilhamento de pedras com diferentes tamanhos. Já poucos exemplares sobram das antigas casas agrícolas com cobertura de “salão”, um material argiloso de tonalidade amarelo cinza esverdeado agora usado na cosmética e na farmacêutica.

Para que possam perceber o que era a vida até há relativamente pouco tempo, Sofia gosta de conduzir os forasteiros à Casa da Serra, na extremidade oriental da ilha. É um projecto privado. Lomelino José Rosário de Velosa reconstruiu a casa do avô. “Numa altura da seca, o meu avô emigrou para a África do Sul e isto ficou completamente abandonado”, conta ele. Começou por fazer pão no forno a lenha, patuscadas com os amigos ao fim-de-semana. Quando deu por ela, andava à caça de velharias. Pouco a pouco, estava a reconstruir alguns cenários da sua infância. Quando a crise económica e financeira se instalou, perdeu o emprego de administrador numa empresa de construção. “Dediquei-me a este projecto mais a fundo”, prossegue o homem, agora com 52 anos. “Tenho 20 anos do meu trabalho investidos aqui! Com o desemprego, nós temos de nos virar. Numa ilha tão pequena não temos saídas.”

A exploração de cal chegou a ter alguma expressão económica. Houve uma fábrica de água mineral e uma fábrica de conservas de peixe. A vida, porém, só melhorou com os fundos estruturais, o desenvolvimento do turismo e a instalação da Central Dessalinizadora, neste momento a única fonte de água potável com qualidade para o abastecimento público. E isso é tão recente que se confunde com a história da família de Sofia.

Ao que vai contando num passeio de todo-o-terreno pela ilha, tudo começou com o bisavô José Rocha. Era de Santa Cruz, na costa sul da ilha da Madeira. Mudou-se para Porto Santo em 1940 e trouxe o primeiro carro particular a ficar serviço público. Adorava andar com estrangeiros e passou esse gosto a um dos netos, Higino Santos. “Eram inseparáveis”, diz Sofia. Higino, o pai dela, aprendeu a desenrascar-se em sete línguas. “Se um alemão quisesse comprar uma casa ou tivesse um acidente, chamavam-no.” Agências de Turismo sediadas na ilha vizinha contratavam os seus serviços. Tornou-se guia-intérprete freelance.

O mundo ainda era outro. Para se ter uma ideia, basta falar com qualquer pessoas mais velha ou espreitar o site da câmara: só em 1954 a energia eléctrica começou a substituir os candeeiros de petróleo e a água potável a chegar às torneiras. O primeiro telefonema entre o Porto Santo e a Madeira fez-se em 1959. O primeiro voo comercial em 1960. Os turistas eram quase todos oriundos da ilha vizinha.

A professora Eugénia Miguéis, agora com 66 anos, lembra-se de ser pequena e de vir passar férias com a família. “A casa do meu tipo tinha luz. Era o ramal que ia para a fábrica de conservas. A maior parte das pessoas não tinha luz. Começou a haver luz a partir de 1975”, lembra. “Depois, os continentais descobriram isto.” E os nórdicos. Nas últimas duas a três décadas, o sector deu um salto.

Maria José, a mãe de Sofia, trabalhava no Hotel do Porto Santo, um dos primeiros a abrir. Era recepcionista. Uma recepção, explica a mãe, é uma espécie de posto de turismo aberto 24 horas por dia. “Pediam-me todo o tipo de informações. Eu trabalhava até às quatro da tarde, mas raramente, saia a horas. Tinha sempre mais trabalho para fazer. Às cinco já o meu marido estava à minha espera, numa carrinha de oito lugares, para fazer uma excursão.” Decorria 1996 quando decidiram abrir uma agência, a primeira sediada na ilha, a que chamaram Lazermar.

Só a filha mais velha, Sofia, lhes seguiu os passos. As suas memórias de infância e juventude têm gente de muito lado. Cedo aprendeu a entoar canções em várias línguas. “Também acabei por lhe ganhar o gosto.” Mal tirou carta de condução, contava 18 anos, fez-se à estrada. Nos primeiros tempos, andava de camioneta pelas estradas principais. “Achava que não se mostrava a beleza da ilha, a sua simplicidade.” Sugeriu que se comprasse um todo-o-terreno. Começou a fazer um circuito alternativo pelas estradas secundárias. “É um orgulho ter sido a primeira.”

Entusiasma-se a falar nas propriedades terapêuticas das águas tépida e da areia carbonatada biogénica, boa para aliviar as dores de quem padece de doenças do foro músculo-esquelético. Mas também nos vinhos, nos frutos, nos tradicionais biscoitos.

A maior parte da população vive junto à praia, que bordeja a costa Sul. Há apenas duas localidades mais a Norte – a Camacha, na parte final do aeroporto, e a Serra de Fora, na zona montanhosa. “Só 30% da ilha é permitido construir”, salienta. “A outra parte é protegida. Tem vários patrimónios naturais.” A candidatura do Porto Santo à Rede Mundial de Reservas da Biosfera, coordenada pela bióloga Susana Fontinha, foi entregue na UNESCO em Setembro deste ano.

No princípio de tudo está um vulcão-escudo submarino. As últimas erupções terão ocorrido há 10,2 milhões de anos. Ao que se lê no dossier de candidatura, “a actividade vulcânica posterior está apenas representada por rochas filonianas básicas, com cerca de 8,3 milhões de anos”. E “as formações mais recentes correspondem a depósitos sedimentares de idade quaternária”.

Na pequena ilha estão classificados dez Geossítios (Praia, Zimbralinho, Morenos, Pico de Ana Ferreira, Serra de Dentro, Pico da Cabrita, Fonte da Areia, Ilhéu de Cima - Pedra do Sol, Ilhéu de Cima - Cabeço das Laranjas, Ilhéu da Cal). E sete sítios de geodiversidade (Pico Espigão, Serra de Fora, Pico Branco, Porto das Salemas, Pico de Juliana, Pico do Facho e Pico do Castelo).

Sofia não se cansa de admirar as formações rochosas, as suas muitas cores e a vida, por vezes secreta, a que ilha acolhe. Gosta de percorrer trilhos de pastores, como a Vereda do Pico Branco e Terra Chã, de mostrar as arribas abruptas na zona dos Morenos, de caminhar na Fonte da Areia, um trabalho de escultura feito pelo vento e pela chuva nos maciços de areia, de olhar o Pico Ana Ferreira. “Parece um piano natural. É um monumento. A geometria perfeita da natureza”, suspira, estabelecendo um paralelo com a Calçada do Gigante, na costa da Irlanda do Norte. São milhares de colunas prismáticas de basalto encaixadas como se formassem uma calçada. Ali também o magma arrefeceu devagarinho.

Quando se discute o futuro, primeiro não parece ter grandes ambições. “Somos uma empresa pequenina”, comenta. “No Porto Santo, não dá para ir muito rápido. Temos de ir devagarinho, pensar que trabalhar cá é trabalhar só seis meses do ano. Qualquer empresa – hotel, restaurante, animação — só consegue rentabilizar o negócio metade do ano.” Depois, começa a falar em mudança.

Sinal de mudança número um: Porto Santo já anunciou ao mundo que quer ser a primeira ilha livre de combustíveis fósseis. O objectivo, ao que tem dito o Governo regional, é ter uma rede de energia completamente limpa e renovável e apenas carros eléctricos a circular.

Sinal de mudança número dois: a candidatura à UNESCO está lançada. Espera-se que a classificação de Reserva da Biosfera ajude a desenvolver o turismo sustentável, a ilha a tornar-se num destino para todo o ano, diferenciado pela autenticidade. E há todo um discurso sobre “a salvaguarda do ambiente, a promoção da responsabilidade social de operadores e agentes turísticos e a conciliação entre a actividade turística e as dinâmicas sociais locais”.

Sinal de mudança número três: a antiga escola primária da Vila Baleira, projectada por Raul Chorão Ramalho, está a transformar-se num laboratório do pensamento e das artes. Tudo graças a uma parceria entre a Porta 33 - Centro de Arte Contemporânea, o Plano Nacional das Artes, que une o Ministério da Cultura ao Ministério da Educação, o Governo Regional da Madeira e a Câmara de Porto Santo.

Foi nessa escola que Sofia começou a estudar. Agora, volta a olhar para este espaço com expectativa. Como para o resto da ilha. Para acelerar o futuro sustentável, meteu-se na política, mas essa é outra história.

Ana Cristina Pereira

Público

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